6 de junho de 2015




Aurélio Cunha revela os bastidores dos primórdios do jornalismo de investigação em Portugal

 
 

Ex-repórter do "Jornal de Notícias" e antigo colaborador do Expresso lança este sábado o livro

Foi um dos grandes e porventura dos mais ousados e atrevidos repórteres portugueses da segunda metade do século XX. Quando ainda ninguém teorizava sobre jornalismo de investigação, sobretudo num país ainda em ditadura ou acabado de conquistar a liberdade, Aurélio Cunha assumiu como uma espécie de missão contar o que a todos escapava, narrar o inimaginável, destapar escândalos impensáveis, como a história do sangue contaminado no tempo de Leonor Beleza como ministra da saúde, mas sempre com uma preocupação quase obsessiva: assegurar a veracidade dos factos, garantir a impossibilidade de ser desmentido. As histórias por trás das grandes histórias que deram manchetes inesquecíveis e fizeram esgotar sucessivas edições do "Jornal de Notícias" são agora contadas no livro que é apresentado este sábado, a partir das 16 horas, na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto.
Aurélio, retirado há alguns anos, começou por escrever para publicações ligadas à Juventude Operária Católica, colaborou com o "Diário do Norte", um jornal muito ligado ao Estado Novo e onde acaba por lhe acontecer uma deliciosa história com a censura, e chega ao "Jornal de Notícias" em março de 1973.
Num tempo ainda muito distante da presença das televisões no quotidiano dos cidadãos, o JN, tido como o jornal do povo, era o local para onde o povo telefonava sempre que queria comunicar um desastre, uma desavença entre vizinhos, um incêndio, um roubo, uma agressão, e tudo o mais que o dia a dia gerasse.
É para esse ambiente que entra Aurélio Cunha, mas depressa dá consigo próprio inconformado com um jornalismo rotineiro, muito dependente de casos de polícia e até das visitas regulares aos hospitais e às sedes das diferentes polícias para ver se havia alguma coisa. Quase sempre havia, mas o que havia era o mesmo de sempre.
Furar as rotinasAurélio decide começar a furar as rotinas, mesmo, segundo conta, com a incompreensão das chefias, num tempo em que era ainda visto como um luxo, ou até um sinal de arrogância, um jornalista pretender estar fora da agenda para se dedicar em exclusivo à investigação de temas que, pela sua delicadeza ou complexidade, exigiam uma grande disponibilidade. Foi um combate difícil. Aurélio, garante, chegou a ter de meter sucessivas baixas psiquiátricas para poder, assim, dispor do tempo exigido pelas investigações. Depois, no final da baixa, aparecia no jornal com uma reportagem escrita, pronta a publicar, quase sempre durante vários dias e por regra tão forte e apetecível que provocava uma desmesurada procura do jornal.
Se fosse necessário, e para conseguir os seus objetivos, Aurélio disfarçava-se, assumia outras identidades, aparecia na cadeia da relação do Porto ofegante, e apresentava-se como o sacristão que já devia lá estar para participar na missa da consoada de 1973. Admirados, mas não desconfiados, os guardas deixam-no entrar e é deste modo que o jornalista consegue aceder ao contacto com os presos.
Escândalo na cadeiaAinda o mundo dos presos deu origem a uma série de trabalhos na cadeia de Custóias, nos quais se falava de violação de menores, tráfico de droga e outras enormidades passadas no interior da prisão. O escândalo foi maiúsculo. O diretor da prisão foi afastado, houve uma investigação, foi criada nova legislação para tentar prevenir aquele tipo de situações e consignada verba para criar 250 novos lugares de guardas prisionais. Num livro que em alguns momentos em muito se assemelha a um profundo mergulho num mundo de aventuras, mas aqui feito de realidades, Aurélio Cunha vai passeando por alguns dos seus trabalhos e mostra como no jornalismo há importantes componentes que podem ser ensinadas, mas o essencial passa pela capacidade do repórter perceber, ou não, a dimensão do que lhe passa à frente dos olhos.
O caso do sangue contaminado, porventura uma das mais poderosas reportagens de Aurélio Cunha, é disso exemplo paradigmático. A história nasce de um verdadeiro "fait divers". Um dia, no início de 1988, telefona-lhe uma tal Gina, que se apresenta como amiga da Manela, filha da D. Guiomar. A evocação do nome de D. Guiomar era, na opinião de Gina, o passaporte para Aurélio aceitar ouvi-la. E porquê? Porque a D. Guiomar recorria com frequência ao JN e a Aurélio Cunha devido a uma situação muito particular. Como morava numa curva da estrada Exterior da Circunvalação, via o muro de sua casa com frequência abalroado e destruído por camiões e isso era motivo de notícia.
Gina e o sangue contaminadoOra, com base naquela confiança, Gina achava que Aurélio poderia dar um jeito numa situação por ela vivida. É que no edifício onde trabalhava, junto ao mercado do Bolhão, havia sempre "uns manguelas" deitados debaixo das escadas a espreitar as pernas das mulheres que subiam as escadas. Estupefacto, Aurélio tenta num primeiro momento explicar que nada pode fazer, mas face à insistência, até porque costuma dar as notícias da D. Guiomar, o jornalista, já em desespero, pergunta-lhe se os "manguelas" vão para lá de propósito para espreitar as pernas. A resposta desencadeia um notável trabalho jornalístico com enormes consequências no sistema de saúde português. Gina explica a Aurélio que aquela gente está ali a fazer horas para ir ao segundo andar dar sangue.
Aurélio Cunha poderá ou não ter saltado da cadeira, mas percebeu de imediato ter ali uma grande história, como se veio a comprovar. Marginais do Porto estavam a ser pagos para dar sangue e tudo era feito sem qualquer controlo e, consequentemente, com gravíssimas consequências face às fortes hipóteses de ser aquele um veículo de transmissão do vírus da Sida. A 8 de fevereiro de 1988, o JN publicava na primeira página, "em letras garrafais, a vermelho", como diz Aurélio Cunha, "um grito de alarme que preocupou o país e abalou o Ministério da Saúde". O título era: "Sangue - transfusões mortais em Portugal".
O resto da história é conhecido. Foi uma das situações mais dramáticas e traumáticas vividas pelo ministério dirigido por Leonor Beleza, tanto mais que, recorda Aurélio, "meses antes fizera chegar à caixa de correio de cada família portuguesa um prospeto a prevenir que o vírus da Sida também se transmitia por transfusão de sangue não corretamente selecionado". Ao mesmo tempo assegurava que, em Portugal, "o sangue usado nas transfusões e os produtos dele derivados são devidamente controlados".
O caso assumiu proporções gigantescas e ficou como um marco dos primórdios do jornalismo de investigação em Portugal, feito ainda com escassos meios. Ao longo de mais de 400 páginas, Aurélio Cunha provoca uma espécie de regresso a um tempo e a uma forma de fazer jornalismo já inexistentes, mesmo se continuam a ser as mesmas as necessidades e urgências que se colocam ao jornalismo que não se pretende acomodado. 



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